Durante muito tempo, falar de bebidas destiladas produzidas no Brasil trazia à tona o antigo complexo de vira-lata. Com uma exceção ou outra, os rótulos nacionais eram sinônimo de qualidade duvidosa. Para a alegria dos fabricantes estrangeiros, virou corrente a percepção de que “bebida boa é bebida importada”.
Não mais. Passada a revolução das cervejarias artesanais, que impactou até mesmo gigantes como a Ambev — que conta hoje com dezenas de marcas especiais em seu portfólio —, agora é a vez dos destilados nacionais ganharem seu lugar nas mesas de bar. “Os consumidores já sabem que o Brasil é capaz de produzir produtos de qualidade e estão mais abertos a experimentar”, diz Cesar Adames, um dos autores do livro O Essencial em Cervejas e Destilados (Senac).
É essa aceitação que possibilita o lançamento de destilados como uísque e vodca com DNA nacional, preços similares aos concorrentes estrangeiros e espaço de honra nas prateleiras de bares badalados. “As empresas que estão fazendo sucesso apostaram em duas estratégias: o investimento em degustações às cegas, que ajudam a vencer os preconceitos de donos de bares e formadores de opinião, e a aposta na educação de bartenders”, afirma Adames. “São eles que vão explicar ao público as características únicas dos destilados artesanais.”
O caminho para a invasão dos destilados made in Brazil foi aberto pelo fenômeno do gim. Só em 2017, o consumo da bebida, impulsionado pelo refrescante gim-tônica, cresceu 66% no país, segundo a Euromonitor International (os dados de 2018 ainda não foram divulgados). Está explicado porque tantas marcas estrangeiras desembarcaram por aqui, e outras tantas nacionais surgiram de uma hora para a outra.
Virga, Draco, Arapuru e Vitória Régia são alguns dos representantes do segundo grupo. Produzido numa fazenda em Barra Mansa, no interior do Rio de Janeiro, o Amázzoni é o que foi mais longe. Composto por álcool de cereais e 11 botânicos, na maioria encontrados aqui, como coentro, mexerica e maxixe, é produzido pela Destilaria Amázzoni, fundada pelo artista plástico carioca Alexandre Mazza, 49 anos, e pelo empresário italiano Arturo Isola, 45. Em atividade desde março de 2017, a empresa foi a vencedora da categoria Melhor Produtor Artesanal no World Gin Awards, o Oscar do setor, concedido na Inglaterra em fevereiro de 2018. “Provamos que o Brasil pode competir de igual para igual com os principais produtores do mundo”, diz Isola.
A qualidade e a aceitação da bebida deixaram o grupo francês Pernod Ricard, dono de marcas como Absolut e Chivas, salivando. Em 2018, por um valor não divulgado, o gigante comprou uma fatia minoritária do Amázzoni — o investimento inicial e o faturamento da marca são mantidos em sigilo. As vendas em 2017, de 50 mil garrafas, dobraram no ano passado: a meta para 2019 é chegar a 170 mil unidades.
As exportações, para Itália, Cingapura, Luxemburgo e Portugal, que em 2018 representaram 8% das transações, devem saltar para 18%, com a inclusão de Estados Unidos e França. Que bebida artesanal não sonha com uma trajetória parecida?
O mixologista Cesar Griffo, 30 anos, fez uma aposta um pouco mais arriscada. Decidiu lançar uma versão pronta do negroni, aquele drinque amarguinho tradicionalmente preparado com Campari, gim e vermute. Há três anos, fundou, ao lado do empresário Leandro Faria, 40 anos, a Famiglia Griffo. Seu carro-chefe é o Negroni Ricetta 45, ou N45. O nome faz menção ao número de receitas descartadas até o mix ideal — todos os ingredientes utilizados são artesanais.
“Nosso diferencial é a praticidade e o padrão”, afirma Faria. “Se você tomar um negroni em cinco bares, vai provar cinco bebidas diferentes.” A produção é terceirizada numa fábrica em Jundiaí, a Brunholi Brands. Griffo não revela o faturamento — o investimento inicial foi de R$ 2 milhões.
A Famiglia Griffo comprou briga com a gigante Campari, que passou a vender sua versão pronta do negroni também em 2016. E inspirou concorrentes: depois de atuar por 18 anos no balcão do restaurante Spot, em São Paulo, o bartender Alê D’Agostino decidiu pedir as contas e lançar a Apothek Cocktails & Co., sua marca de coquetéis engarrafados, em 2017. Desdobrada há dois anos em um pequeno bar no bairro de Pinheiros, fabrica três drinques prontos: o negroni, o negroni acrescido de Jerez e o dry martini.
Dono do Café de La Musique e outras casas no Rio de Janeiro, Mário Bulhões, 34 anos, resolveu investir em um destilado que já viveu dias melhores, a vodca. “A bebida não está em baixa, só perdeu destaque por causa da febre do gim”, diz Bulhões, que lançou, em fevereiro deste ano, a Voa, sigla para Vodka Original Artesanal. “É a bebida que menos interfere no sabor dos coquetéis”, afirma o empresário. “Faltava no mercado uma vodca nacional de qualidade. As que existem hoje deixaram um estigma ruim. Minha missão é acabar com essa má reputação.”
Vendida a R$ 99,90, a bebida é produzida com álcool proveniente de milho de colheita madura. O lote inicial, de 20 mil garrafas, foi produzido numa destilaria especializada em cachaça situada em Caicó, no Rio Grande do Norte. Uma fábrica própria em Três Rios, no Rio de Janeiro, deve entrar em operação em junho. Dessa maneira, a empresa pretende ampliar a produção para 50 mil garrafas por ano. No Rio, a novidade já pode ser degustada nos restaurantes do chef francês Claude Troisgros, além de ser vendida em empórios e supermercados.
Já há até um single malt para chamar de nosso. Lançado no ano passado, é uma criação da cervejaria mineira Backer, fundada em 1998. Apelidado de 3 Lobos Experience, o uísque é feito com malte destilado em alambique de cobre e maturado por até sete anos em barricas de carvalho americano — usadas anteriormente para acondicionar o bourbon da Jim Beam. O lote número 1 é composto por 6 mil garrafas numeradas, vendidas a R$ 180 cada uma.
A ideia surgiu durante uma viagem dos donos da cervejaria à destilaria da Jack Daniel’s, no estado americano do Tennessee. “Ali percebi que tínhamos tudo para fabricar uma bebida similar”, diz Paula Lebbos, 48 anos, fundadora da Backer. “Para muita gente, o único Bourbon que existe é o importado. Mas estamos mudando essa percepção”, diz Paula, que também colocou no mercado um gim com adição de flor de lúpulo, o Lebbos. Para o final de 2020, está previsto mais um uísque, um single malt trufado. A empresa prevê um faturamento de R$ 80 milhões neste ano, mas não revela a contribuição dos destilados.
Sediada no município de Serra Negra, no interior de São Paulo, a Hof Microdestilaria aproveitou a nova onda de destilados artesanais para diversificar o portfólio, que hoje não tem nada a ver com o inicial. Quando o negócio surgiu, em 2004, vendia queijos; depois, passou para os licores. O sucesso desses últimos levou à instalação de um alambique, onde nasceu a cachaça Alma da Serra, premiada em 2014 com a medalha de ouro da categoria no prestigioso Concours Mondial de Bruxelles.
“Nos dois anos seguintes à premiação, a Hof cresceu 200%”, diz Waldemar Stocco, 55 anos, responsável pelas receitas dos destilados nos quais a empresa vem apostando recentemente. “Percebemos que havia uma demanda forte por produtos desse tipo”, diz. Hoje, além de seis variedades de cachaça, a HOF produz dois gins e dois licores (a empresa não divulga o faturamento). Para o final de abril, estava previsto o lançamento de uma versão engarrafada do rabo de galo, com uma produção de 5 mil garrafas por ano. Um dos drinques mais populares do país, o rabo de galo é feito com cachaça e vermute, o que motivou a empresa a criar uma linha própria dessa bebida destilada. Em breve, os bares serão abastecidos com vermutes Hof nas versões rosso, bianco e extrasseco. E há ainda um uísque e um rum em fase de testes. Se o mercado de destilados nacionais não for para a frente, não será por falta de variedade.
Fonte: PEGN