Quebra de rotina, atividades on-line sem adaptação e falta de convivência com outras crianças são obstáculos. Mães contam ao G1 como enfrentam o desafio de educar filhos com transtorno.
“A pandemia piorou tudo, porque minha filha ficou sem escola, sem rotina, sem terapia. Sumiu tudo da vida dela. Tentei dar atividades em casa, mas ela começava a se agredir. Por causa da automutilação, ficou mais de uma semana internada”, conta Vanda Paiva, mãe de Sara, de 21 anos.
Para crianças e jovens com transtorno do espectro autista (TEA), ficar longe da escola e das terapias durante a pandemia pode ser ainda mais desafiador, porque:
- a mudança de rotina costuma elevar o estresse e o nervosismo, causando surtos de agressividade;
- a falta de contato presencial com colegas pode prejudicar ainda mais as habilidades de socialização, antes desenvolvidas em sala de aula;
- o longo tempo diante de telas traz cansaço e irritação;
- as escolas nem sempre desenvolvem adaptações no conteúdo e nas atividades oferecidas à distância.
Além disso, os pais se preocupam com os riscos de contaminação: autistas severos e não verbais, por exemplo, não conseguiriam expressar em palavras que estão se sentindo mal – o que retardaria a procura por ajuda médica em casos de Covid-19.
A prevenção também não é simples: parte deles apresenta um incômodo maior em usar máscara.
Abaixo, veja relatos de mães que tentam garantir o desenvolvimento e a aprendizagem de seus filhos com autismo, apesar de todos os (novos) obstáculos.
É importante ter em mente que o transtorno reúne sintomas mais comuns, como dificuldade na interação social e na comunicação, mas pode se manifestar de formas diferentes em cada indivíduo (alguns sequer falam, por exemplo; outros são alfabetizados).
‘Se eu insistia, ela começava a se agredir’
Vanda tenta ajudar sua filha, Sara. A jovem tem autismo e enfrenta crises de automutilação. — Foto: Arquivo pessoal
Sara, mencionada no início da reportagem, chegou a estudar em uma escola regular de São Paulo quando era criança. Depois, a mãe optou por transferi-la para um colégio especializado em pessoas com deficiência.
No começo da pandemia, com a suspensão das aulas presenciais e dos atendimentos terapêuticos, Vanda tentou propor atividades pedagógicas para a filha em casa. No entanto, a jovem não reagiu bem à mudança brusca de rotina.
“Ela pensava ‘aqui não é minha escola’. Eu colocava o material na mesa, mas ela não queria. Se insistia, ela começava a se agredir”, conta a mãe.
Os episódios de automutilação foram ficando mais frequentes — batia a cabeça na parede, se arranhava. No mais grave, Sara mordeu tanto o lábio que arrancou um pedaço da carne da boca.
“Ficou internada mais de uma semana. Ela quase não fala, então, pegava minha mão e botava na boca dela [para mostrar que estava com dor]. Também passou 3 meses em uma clínica para adequar as medicações. Ela ficava me chamando; as visitas eram difíceis. Perdeu 13 kg nesse período”, diz Vanda.
A família não tem condições financeiras para arcar com as despesas de um tratamento especializado. A mãe relata que não pode trabalhar, já que passa o dia inteiro cuidando da filha, e diz sentir falta de ajuda do ex-marido.
“Não existe mais a Vanda; existe só a Sara. Nós somos uma só. A minha sorte é que tenho ajuda de vizinhos e do pessoal da igreja. Mas passei um ano sem o auxílio que recebia do governo. Não consigo nem pegar mais os remédios de graça no posto de saúde”, diz.
Vanda não sabe se, com a retomada das aulas presenciais, Sara conseguirá frequentá-las novamente. “Vamos ver como ela vai agir. Já será outra professora, e isso dificulta a adaptação. Vai mudar a rotina toda de novo.”
‘Meu filho me procurou para dizer que estava se sentindo burro’
Veronica Oliveira, influencer e criadora do perfil “Faxina Boa”, já enfrentou problemas em escolas municipais, estaduais e privadas onde seu filho Ian, de 12 anos, estudou (ou tentou) estudar.
“Teve escola pedindo para que eu o tirasse de lá, porque os professores não sabiam lidar com o autismo”, conta.
No início de 2020, depois de mudar de bairro, Veronica procurou um novo colégio para Ian. Novamente, a decepção: quando a matrícula já estava concluída, a coordenação viu a ficha do menino, descobriu que ele era autista e disse que “não havia mais vaga”.
Ian tem autismo moderado. Ele se queixa das aulas on-line. — Foto: Reprodução/Instagram
Foram diversas escolas visitadas até encontrar uma adequada e inclusiva. Mas só deu tempo de Ian ir uma vez à aula: logo, começaram os primeiros casos de Covid-19 no Brasil.
Quando soube que as atividades seriam suspensas, o menino comemorou. Por algumas semanas, ele seria poupado de conviver com outros colegas diariamente e de estudar em um ambiente barulhento — a interação social e os ruídos eram desagradáveis para ele.
Mas a alegria não durou muito. A pandemia se estendeu por mais tempo do que o previsto, e as aulas foram substituídas por atividades on-line. Foi o começo de uma série de desafios novos para o menino.
“As crianças deixam o microfone aberto nas aulas, então a gente escuta cachorro latindo, menino pedindo para ir ao banheiro, outro dormindo. Meu filho me procurou para dizer que estava se achando burro, porque não conseguia se concentrar”, conta Veronica.
“Não ter um amigo ao lado e ficar olhando para a tela faz com que o tempo passe mais devagar para ele.”
Na escola particular onde estuda, Ian faz parte de uma turma de alunos sem deficiência. Antes da pandemia, uma professora auxiliar o acompanhava durante o dia, atenta a eventuais crises de nervosismo que ele poderia apresentar.
Depois da suspensão das aulas presenciais, Ian ficou distante de outros pré-adolescentes, e esses momentos de irritação se tornaram mais comuns.
“Em dezembro, quando as coisas estavam um pouco mais tranquilas, nosso prédio reabriu as áreas comuns, e meu filho teve alguns episódios de agressividade com outras crianças. Fazia muito tempo que isso não acontecia”, relata Veronica.
‘Ele teve um retrocesso, deu uma travada’
Alcinda Castor é professora de ciências humanas em dois colégios públicos de São Paulo. Ela é mãe de Gabriel, autista de 24 anos que estuda desde 2014 em uma escola especializada para pessoas com deficiência.
Com as aulas presenciais, as terapias e o tratamento com canabidiol, o jovem estava se desenvolvendo mais. “Ele ficou menos agressivo e até começou a falar ‘mamãe’ e ‘papá’. Estava bem”, conta a mãe.
Gabriel, de 24 anos, tem autismo e estuda em uma escola especializada para pessoas com deficiência. — Foto: Arquivo pessoal
“Na pandemia e em casa, ele teve um retrocesso. Deu meio que uma travada. Vai precisar fazer fisioterapia, porque a mãozinha dele fica virada”, diz.
“Eram coisas que a gente tinha conquistado antes, mas que se perderam. Vai precisar começar todo esse trabalho do zero de novo.”
Gabriel não é alfabetizado, então as atividades oferecidas durante a pandemia costumam ser lúdicas. Mas ele não entende por que, de repente, o lugar que antes era de descanso, brincadeira e televisão agora é seu canto de estudos.
“Para o autista, a rotina é importante, e ela não existe mais. Para entender que precisam fazer atividade em casa de maneira remota, é muito complicado.”
Diariamente, a mãe fica ao lado dele, ajudando nas lições. O desafio é conciliar essa assistência com o emprego em duas escolas.
“Não tem jeito, eu preciso ficar junto. Com a mudança de rotina, ele não quer entrar na aula on-line. E não é só ele: os outros alunos tomam remédios fortes, dormem. Se a gente insiste, eles ficam nervosos. Eu espero o Gabriel estar tranquilo, aí faço a atividade, tiro foto e mando para a escola”, diz.
“Mas não é fácil, nem toda mãe consegue ter esse tempo. Não fizemos uma atividade ainda hoje, porque eu estava em reunião desde cedo”, diz.
‘Estar junto de outras crianças puxava o desenvolvimento dele’
“Ficar meses sem escola e sem terapia foi enlouquecedor, em um apartamento de 60 metros quadrados. De repente, parou tudo. Meu filho começou a arremessar tesoura pela janela, ventilador pequeno”, conta Tarita Garcia, mãe de Lucas, de 11 anos, que tem autismo moderado.
Ele estuda em um colégio particular de São Paulo, na mesma classe de crianças sem deficiência. Em geral, a instituição tem um bom programa de inclusão, com adaptação de atividades e contratação de profissionais capacitados. Na pandemia, no entanto, não houve uma solução para atender os alunos com autismo que não conseguiam se concentrar na aula normal dada on-line.
Lucas, que tem autismo moderado, e sua mãe, Tarita. O menino teve dificuldade em acompanhar o ensino remoto. — Foto: Arquivo pessoal
“O que eu solicitei nesse período é que ele fizesse duas aulas à distância por semana. Ele fica muito nervoso, agitado, é difícil. Não consegue seguir algo que não é concreto, que está em duas dimensões numa tela. É uma tortura para ele”, diz. “Cheguei a falar com a direção, pedi até um desconto na mensalidade, mas não consegui.”
Para tentar diminuir o impacto no desenvolvimento do filho, Tarita contratou uma pedagoga por 20 horas semanais.
“A parte de aprendizagem ficou coberta. Mas o cenário da interação vai ser o pior em termos de prejuízo. Ele tem um déficit importante na socialização. Estar junto de crianças neurotípicas puxava o desenvolvimento dele”, afirma a mãe.
Tarita é fisioterapeuta e atende crianças com transtornos de desenvolvimento. “Tenho expertise e condição financeira que me permitiram dar esse apoio ao meu filho, com clínica de pedagogia. Mas muitos estão trancados dentro de casa, porque não houve alternativas além da aula on-line. Para a grande maioria, a gente vai retroceder uns 40 anos em termos de inclusão.”
Nem mesmo a retomada das atividades presenciais, sendo durante a pandemia, resolveria a situação. Os cuidados de prevenção contra a Covid-19 são incômodos para Lucas. “Ele morde a máscara, aí, ela fica molhada. Precisa ter alguém ao lado, trocando o tempo todo.”
‘Fomos criando uma sintonia. Agora, ele me dita textos enormes’
No Paraná, Karina Bonato ficou preocupada quando percebeu que seu filho, Murilo, de 14 anos, ficaria por tanto tempo sem aulas presenciais e atendimentos terapêuticos. “Desde que ele tinha 1 ano e 11 meses, seguia uma rotina muito agitada. Do nada, entrou naquela loucura de ficar enclausurado em casa”, conta a mãe.
Murilo tem autismo severo e dificuldade na fala. — Foto: Fernanda Chiminello
O jovem sempre estudou em escolas regulares: primeiro, em uma municipal, depois, no ensino fundamental II, em uma estadual. Até o início da pandemia, ele ainda não havia sido alfabetizado; por causa da apraxia (o cérebro não se conecta com a articulação da boca), falava apenas poucas palavras.
Karina disse que ficou desesperada diante da possibilidade de regressão no desenvolvimento. “Sou da área de educação, então, pensei: ‘vou tentar te alfabetizar, filho’. Ficava cerca de 4 horas com ele, fazendo atividades”, conta.
Foi assim que ela descobriu que Murilo sabia bem mais do que expressava: tabuada, capitais dos estados… e conseguia ler. “Ele falava bem devagar e silabado, mas comecei a entender. Ele foi se sentindo mais seguro para verbalizar comigo. Aí, eu mesma comecei a escrever o que ele ditava. Pensei: ‘estou louca ou ele está falando mesmo?”.
A fala de Murilo não é inteligível — só Karina e algumas terapeutas que o atendem conseguem entendê-la. A mãe diz que, com o tempo, “percebeu as dificuldades em algumas sílabas, como ‘cê’’”.
“Fomos criando uma sincronia. Agora, ele me dita textos enormes. Eu só ajeito a pontuação.”
Aos 14 anos, jovem com autismo severo, que não falava, passa a ditar textos para a mãe
Para Karina, a descoberta dessa nova forma de expressão de Murilo funcionou para acalmá-lo. As crises de nervosismo diminuíram. “Se ele está agitadão, a gente senta, e ele produz o texto. Esvazia a mente e acalma.”
Um segundo livro com as produções do menino será publicado de forma independente em breve.
“Nessa pandemia, descobri um filho que eu não tinha. Eu jamais ia descobrir, sem essa pausa, o dom de ele expressar tudo o que vem guardando.”
Sintomas do autismo
A seguir, veja os principais sintomas do autismo clássico, um dos quadros do Transtorno do Espectro Autista (TEA):
- Dificuldade de interação social: problemas no desenvolvimento de amizades, anomalia em comportamentos não verbais (como não olhar para a pessoa com quem está falando), falta de compartilhamento de experiências, ausência de reciprocidade emotiva (não reagir diante de um colega machucado, por exemplo). As brincadeiras podem ser estereotipadas, com gestos repetitivos.
- Problemas na comunicação: a pessoa não desenvolve linguagem oral ou só fala o que tem utilidade mínima. Pode haver dificuldade na compreensão de significados do discurso. Um estudo do órgão americano Centers for Disease Control and Prevention (CDC) afirma que, nos EUA, 1 a cada 68 crianças tem o transtorno no país. Entre as que foram diagnosticadas, 25% são consideradas não verbais.
- Alterações nos interesses: pode haver uma resistência grande em mudar a rotina, provocando acessos de nervosismo. As brincadeiras também são diferentes: ao brincar com um carrinho, em vez de empurrá-lo, é comum concentrar-se somente na rodinha, por exemplo.
Além dessas, existem outras características menos comuns, como alterações no sono e dificuldades na alimentação.
Foto em Destaque: Fernanda Chiminello
Fonte: G1