Formada em Cinema e apaixonada por ilustração, Edlene Souza, mulher trans, está desempregada há um ano. Nos processos seletivos, ela diz que sempre se depara com um desafio a mais: a transfobia.
“No começo sentia bastante [preconceito], e ia nas entrevistas muito vulnerável, já esperando que viesse algo em algum momento”, relata. Neste contexto de desemprego, o jeito de manter a renda foi empreendendo com uma lojinha de roupas e se tornando trancista.
A realidade vivida por Edlene está no 1º Mapeamento de Pessoas Trans da Cidade de São Paulo, estudo que será divulgado nesta sexta-feira (29) pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos da capital paulista, no Dia da Visibilidade Trans.
De acordo com o levantamento, que ouviu 1.650 pessoas trans e travestis, a maioria da população trans é composta por mulheres jovens, pretas e pardas, e 59% exerciam uma função remunerada durante o período das entrevistas –grande parte no mercado de trabalho informal.
Jornalista e estudante de Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lia Soares, mulher trans, não tem emprego com carteira assinada há dois anos. “A transfobia, assim como o racismo, é um problema estrutural sobre o qual precisamos falar, e que devemos tratar não só em janeiro, e sim o ano todo. A minha torcida é que as empresas ofereçam vagas destinadas às pessoas trans até que eles consigam colocar, no mínimo, 25% do quadro de funcionários com corpos trans e pretos”, diz.
Projeto oferece cursos
Noah Scheffel, ao realizar sua transição de gênero, em 2019, percebeu que seu local de trabalho não era como ele imaginava: a transfobia começou a fazer parte da sua rotina. Decidiu agir para evitar que essa violência fizesse novas vítimas e, com o apoio de uma amiga, fundou em Porto Alegre o EducaTRANSforma.
O projeto oferece capacitação gratuita e inserção de pessoas transgênero (transexuais, travestis, não binários e intersexo) no mercado de trabalho da tecnologia, buscando ser uma ponte entre pessoas trans e empresas.
Em decorrência da pandemia e antes que completasse um ano de existência, o EducaTRANSforma precisou migrar do presencial para uma plataforma online. “Com as novas turmas para o curso online, em agosto de 2020, tínhamos orçamento para 50 vagas e recebemos mais de 1.600 inscrições em três dias”, conta.
O empreendedor cita, orgulhoso, que a maioria dos alunos conseguiu um emprego após o curso. “A média dos que estão cursando é de 80% de empregabilidade, o que é muito importante para nós, porque partimos de um pressuposto de 50% ou um pouco menos”, afirma.
Plataforma de empregos
A plataforma Transempregos, criada em 2013, ajuda na inserção de pessoas trans e travestis no mercado de trabalho formal. Com crescimento de 315% de janeiro de 2020 até janeiro de 2021, o projeto tem parceria com 715 empresas –entre elas, KPMG, Accenture e Mercado Livre.
“No começo, nós que íamos atrás das empresas, e hoje em dia é raríssimo isso acontecer. Por dia, são seis, sete empresas com que a gente conversa”, diz Maitê Schneider, co-fundadora da Transempregos.
Mesmo com um maior interesse das empresas em contratar pessoas trans e travestis, para Maitê, as corporações precisam entender que a oportunidade é direito básico. “As empresas de fato começaram a entender um pouco mais que [o emprego] não é favor, não é gentileza e, em contrapartida, é um ganha-ganha para todas as partes. Quanto mais a equipe for diversa, mais potente vai ser o resultado.”
De olho no mercado
A consultoria Accenture tem há quase dez anos lidado com a questão da diversidade de forma global. Atualmente, tem oito colaboradores trans em seu quadro de funcionários no Brasil.
“Enxergamos que todos têm talentos e temos feito contratações em geral. Procuramos contratar executivos para todas as diversidades e queremos promover o crescimento da organização”, diz Beatriz Sairafi, diretora de Recursos Humanos da Accenture Brasil.
Um dos casos é o da consultora de negócios Fernanda Mayr Ferreira, mulher trans. “O mercado em geral ainda está muito pobre em polícias de diversidade. Na própria TI, mesmo com vários programas, ainda é uma área dominada por homens héteros, cis e brancos”.
Outra empresa que busca ampliar a diversidade em seu quadro de funcionários é a consultoria KPMG, que tem 5.000 funcionários no Brasil –entre eles, 4 transgênero.
“A diversidade está incluída de maneira natural, ela está presente e continuará presente. O diálogo não será mais entre sim e não para essa agenda, mas sim como aumentar a gama de inclusão”, diz Danielle Torres, sócia diretora da KPMG. “O que eu busco numa organização é naturalidade. Sou só uma pessoa transgênero, eu quero ser considerada para os processos de forma natural”, completa.
O Mercado Livre tem o lema #livresparaserquemsomos. Dentro do seu quadro de funcionários, há sete pessoas trans e travestis. “Contratamos três pessoas que se autodeclaram pessoas trans. Elas não estão ainda em cargos de liderança, mas vemos como uma oportunidade de criar esses cargos”, diz Patrícia Araújo, diretora de Recursos Humanos da companhia. “Temos um grupo hoje que pensa somente como podemos fazer para nos tornarmos mais inclusivos nas vertentes em que trabalhamos.”
Capacitação e bolsa em SP
Criado em 2008 pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos de São Paulo, o programa Transcidadania oferece apoio a pessoas trans e travestis em situação de vulnerabilidade social. O programa tem foco na progressão escolar e capacitação, e concede uma bolsa mensal no valor de R$ 1.097,25 para participantes. Ao todo, são 510 vagas distribuídas na capital.
“No recorte mais vulnerável das pessoas trans, percebemos que muitas estão em situação de vulnerabilidade porque não tinham conseguido terminar os estudos, e a prostituição acaba se tornando um mecanismo de geração de renda justamente pela baixa escolaridade”, afirma a secretária da pasta, Claudia Carletto.
Dentro da pasta, a secretária afirmou que há dois funcionários transgênero. “Pretendemos ampliar as vagas e, inclusive, estamos discutindo para fazer um recorte de pessoas que prestam serviço para a secretaria, para que eles ofereçam trabalho para pessoas trans”, diz.
Projeto de lei no RJ
No Rio de Janeiro, a deputada estadual Renata Souza (PSOL) apresentou um projeto de lei propondo que empresas privadas que recebem incentivos fiscais sejam obrigadas a reservar 5% das vagas para travestis e transexuais.
A advogada Maria Eduarda Aguiar concorda com a iniciativa. Ela teve a primeira carteira de nome social emitida pela OAB-RJ, em março de 2017, e é membro do Fórum de Travestis e Transexuais do Estado do Rio de Janeiro, que fomenta a empregabilidade para a comunidade trans.
“Isso não é privilégio. As pessoas precisam, e só se consegue melhorar essas transfobias com políticas afirmativas, que são necessárias para que, no futuro, não tenha mais uma cota para uma pessoa trans estar empregada.”
*Sob supervisão de Maria Carolina Abe
Fonte: CNN Brasil