André Biselli e Victor Castello Branco são sócios da Courrieros, delivery com bicicletas que são veículos de inclusão
Temperamentos e interesses tão diferentes podem acabar em conflito. Ou em um projeto bem-sucedido.
Victor Castello Branco, 29, é emotivo, inquieto, extrovertido. Formado em administração, fez pós-graduação em marketing. Torce pelo Santos.
Com 28 anos, André Monteiro de Barros Biselli costuma agir com frieza e se caracteriza pela prudência. Graduado em direito, especializou-se em economia. É palmeirense.
Apesar das dissonâncias, Victor e André cultivam uma amizade de quase duas décadas. Além disso, são sócios da Courrieros, que se dedica a entregas com bicicletas na cidade de São Paulo.
Aptidões distintas mantêm vivo o negócio de impacto, que se equilibra entre a busca pelo lucro e a promoção de inclusão social e sustentabilidade.
“Deixamos de lado nossos pequenos desentendimentos para nos concentrar no que interessa”, diz André. Victor completa, brincando: “A gente quase se mata nas discussões, mas dá certo no fim.”
Ao longo de seis anos, a empresa já empregou mais de 300 pessoas. Atualmente, possui 45 ciclistas contratados e 50 autônomos, que incluem refugiados e ex-presidiários.
Nasceu com um investimento de R$ 40 mil e deve faturar cerca de R$ 3 milhões neste ano. Fazem parte da clientela Netshoes, Reserva e Amaro.
A Courrieros esteve entre as poucas empresas que se beneficiaram com a paralisação dos caminhoneiros, em maio. Como não depende de combustível para as entregas urbanas, viu o número de pedidos quintuplicar nesse período.
Um lance de criatividade contribuiu para o “boom”. Dono de uma cachaçaria, Victor bancou o professor Pardal. Mudou o processo de produção e transformou litros de pinga em álcool, o combustível que abasteceu os utilitários que buscam os produtos nos centros de distribuição dos clientes e levam até a sede da Courrieros.
FÉ EM DEUS E PÉ NA TÁBUA
Católicos praticantes, Victor e André cresceram com vontade de empreender, desde que houvesse um propósito.
Eles se conheceram na pré-adolescência no Clube de Campo de São Paulo, reduto de classe média alta paulistana, que ocupa uma área de mais de 1 milhão de m² na zona sul da cidade. Entre brincadeiras de polícia e ladrão e jogos de futebol, iam de um lado para o outro, pedalando.
Também tinham o hábito de ir às missas na igreja do clube todo sábado à noite. Religiosidade que os impulsionou para o voluntariado. Em agosto de 2007, um terremoto afetou a região sudeste do Peru. Cinco meses depois, os amigos foram à cidade de Chincha Alta para ajudar no mutirão para demolir as casas destruídas pelos tremores, etapa que antecedia a reconstrução.
Os anos passaram, tempo para que vivenciassem carreiras convencionais. Em 2011, deram início a discussões sobre um novo rumo profissional. Em um almoço, Victor sugeriu a André que trouxessem para São Paulo um modelo de entregas com bicicletas que havia conhecido nos EUA.
Começava a nascer a Courrieros Entregas Ecológicas, que abriu as portas em outubro de 2012. “Fui o primeiro funcionário. Não sabia se duraria um mês, um ano, dez anos… Mas resolvi entrar de cabeça”, lembra Julio França, 28, hoje à frente da oficina que presta serviços para a Courrieros.
“Devido ao desgaste físico, o trabalho de entrega com a bicicleta não é para a vida inteira”, afirma André.
“Nossa preocupação é que o ciclista saia da Courrieros em condições melhores do que entrou.”
Logo os sócios enfrentaram as oscilações do mercado. Em junho de 2013, veio a confirmação de que corriam a trilha certa. Foram à Guatemala para receber o prêmio Eco-Challenge, promovido pela Young Americas Business Trust, plataforma de apoio a jovens empreendedores.
A empresa se consolidava, crescia o número de ciclistas. De repente, o baque.
Em outubro de 2014, André foi avisado por telefone de que um ciclista da Courrieros havia sofrido grave acidente no cruzamento das avenidas Paulista e Brigadeiro Luís Antônio. A bicicleta tinha se chocado com um ônibus. O entregador foi levado a um hospital, onde morreu. “Foi o nosso pior momento”, lembra André.
Passado o velório, os sócios cogitaram fechar a empresa, mas receberam apoio dos funcionários para mantê-la. A partir de então, começaram a suspender e até demitir ciclistas em caso de desrespeito a itens de segurança.
“A fatalidade nos fortaleceu. Passamos a colocar tudo em nova perspectiva, inclusive problemas financeiros”, conta Victor.
MOBILIDADE SUSTENTÁVEL
A Courrieros soube se levantar da queda para atrair novos clientes. Segundo Gilberto Avi, diretor de operações da Nespresso, a sustentabilidade foi decisiva para fechar a parceria, após comprovada eficiência para realizar entregas no mesmo dia do pedido.
“Em São Paulo, especialmente nas áreas mais movimentadas, a bicicleta consegue performance melhor do que os meios de locomoção tradicionais”, diz o executivo.
A cicloativista Renata Falzoni ressalta os ganhos ambientais e de mobilidade. “A Courrieros conecta a cidade na distribuição de mercadorias de uma forma lúdica, com saúde, sustentabilidade. Isso pode ser uma revolução. Muda a forma de pensar a logística, com base na força humana, e não na dos motores dos combustíveis.”
Além de criar uma espiral positiva, o modelo da Courrieros é qualificado de “fantástico” por Falzoni. “A forma como eles trabalham com bicicleta, tornando-a ferramenta de inclusão é algo inovador.”
Quando começou como entregador, há nove meses, o venezuelano Francisco di Salvatore, 29, corria a cidade de bike com cápsulas de café na mochila. Atualmente ele faz entregas para três restaurantes.
“Expliquei que era refugiado e, por isso, não tinha muitos documentos. Eles me aceitaram”, conta Francisco, que se divide entre o trabalho na Courrieros e as aulas de espanhol.
“O maior problema para o refugiado é o preconceito. Muitos nos veem como uma bactéria”, diz o venezuelano, que encontrou no serviço de delivery ecológico um habitat inclusivo.
“A gente simplesmente não fecha as portas, o que, de uma forma natural, acaba atraindo essas pessoas”, explica André.
Pedalando pelo asfalto, entre pedras e buracos e congestionamentos, a Courreiros dá mostras que pode ir longe.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br