‘A educação indígena é um marco para a universidade’

Reitor da Ufam afirma que a formatura da primeira turma de 42 Yanomami em Literatura Indígena tem um efeito simbólico muito grande para Amazônia

(Arlesson Sicsú)

No dia 20 de agosto, a Universidade Federal do Amazonas (Ufam) formou a primeira turma com 42 indígenas Yanomami em Licenciatura Indígena: Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável. O momento foi considerado histórico porque, assim como as aulas, a colação também ocorreu dentro da terra indígena, na comunidade Maturacá, em São Gabriel da Cachoeira. Outros indígenas dos povos Baniwa e Tukano também se formaram esse ano pela instituição.

Para falar sobre a formação especial de indígenas, acesso à universidade, inclusão e outros temas, A CRÍTICA entrevistou o atual reitor da Ufam, Sylvio Puga. Sobre a graduação dos indígenas Yanomami, ele explicou que se trata de um curso ‘pós-feito’, uma modalidade de ensino que permite aos alunos, nesse caso, os indígenas, participarem da construção do conteúdo a ser ministrado nas disciplinas.  Confira a entrevista:

Neste mês a Ufam concedeu título de outorga à primeira turma de Yanomami no curso de licenciatura indígena. Turmas de outros povos também já foram formadas neste ano. O que são essas formações e qual a importância delas?

Nós temos o curso de licenciatura indígena, que é pós-feito, ou seja, é aquele em que o aluno dialoga com o professor qual será o conteúdo programático do curso. É isso que o diferencia dos cursos tradicionais que ofertamos na capital e no interior. Essa metodologia permite uma maior inserção do professor e da disciplina na cultura local e naquele ambiente. Por se tratar de um curso pós-feito, ele tem um rito de aprovação diferente na universidade. Primeiro a gente ministra o curso nessa metodologia integrativa e participativa e depois a gente aprova nos colegiados da instituição, no caso, na Câmara de Ensino de Graduação. É um curso construído com o corpo docente e por se tratarem de alunos que compõem uma etnia indígena, elas têm realidades diferenciadas, então fizemos a colação tukano no polo Maturacá, a Baniwa no polo Tunuí Cachoeira e fizemos por último a colação Yanomami no território. Cada um desses cursos teve a grade trabalhada com esses povos.

O senhor explicou o funcionamento dessa modalidade. E qual a importância?

Nós entendemos que a educação indígena é um marco para a nossa universidade. Somos uma instituição que está no centro da Amazônia, é a mais antiga, e os povos originários fazem parte da nossa própria história, então, na verdade, estamos formando e qualificando, e aprendendo com eles, é importante que se diga, porque estamos fazendo a união do saber científico com o saber tradicional. E essa união é muito importante para o nosso aprendizado, porque é a junção do científico com o tradicional. Além da formação em si, a universidade aprende também.

A cerimônia e as aulas ocorreram no território indígena. De que maneira esse conhecimento tradicional dos povos foi levado em consideração durante a formação acadêmica?

É o guia da nossa atividade, porque é um curso que vai ser elaborado a partir desse conhecimento. Ele é a força do curso, o saber tradicional. E, na verdade, é o conhecimento que ao longo do curso vai sendo trabalhado com o saber científico, gerando uma união. Um não se sobrepõe ao outro, há um ponto de equilíbrio.

Ampliando a questão para além dessas formações, na graduação regular da universidade, há uma baixa presença de indígenas. Por exemplo, em cursos de jornalismo, direito, engenharia, enfim. A quê o senhor atribui essa menor presença de indígenas nesses espaços?

Penso que precisamos avançar mais nessa agenda. É um marco o que já estamos fazendo, mas, sem dúvidas, precisamos avançar nessa inclusão social, que é uma preocupação da universidade, então é um ponto que precisamos ampliar.

Neste ano a Lei de Cotas completa 10 anos. Como essa conquista das minorias étnicas mudou os rostos de alunos e alunas que passaram a aparecer na universidade ao longo dessa década?

A universidade precisa estar próxima da sociedade. Lembrando também que o Enem, como hoje é um sistema nacional, permite que os alunos estejam em outras universidades. Então, esse fluxo é de nós para outros e de outros para nós. Quanto ao nosso processo interno, o PSC, permite que os alunos que estão nos municípios venham para Manaus. Então, essa mudança na forma de acesso eu penso que é a democratização do ensino superior, porque a universidade se torna acessível às diversas camadas dessa sociedade. E nosso papel enquanto gestor é fazer com que haja uma política de acesso e permanência desse estudante.

Aproveitando seu gancho, as políticas de permanência servem para garantir a não desistência de alunos durante os estudos, como o restaurante universitário. Como está essa questão na Ufam, especialmente nesse momento da pandemia?

Vou dar um exemplo. Um aluno, seja de Manaus ou até mesmo do interior, que tenha vulnerabilidade socioeconômica comprovada, ele concorre a uma bolsa na instituição. Esse valor vai permitir a manutenção desse aluno. Hoje temos o restaurante universitário e a moradia estudantil. Então, essas e outras políticas permite a permanência do aluno na instituição, o que faz com que não tenhamos evasão e a retenção [aluno que abandona disciplinas].

Voltando para a questão das cotas. É inegável que após a Lei de Cotas houve maior número de acesso de minorias étnicas na universidade. Porém, ainda assim, há uma demanda por parte dos indígenas para mais vagas reservadas, especialmente aqui no Amazonas, que possui a maior população indígena do país. Há chance de esse percentual ser ampliado? 

Eu não tenho nada a me opor, agora essa decisão não é monocrática, mas sim colegiada. A nossa instituição é formada por colegiados, então, na medida em que os colegiados ampliam na pós-graduação, hoje temos diferentes programas com vagas para indígenas, são decisões que vêm dos colegiados. Agora, nós vemos com muitos bons olhos.

Hoje, em alguns programas de pós-graduação da Ufam, existe essa cota, mas em outros, não. É possível padronizar isso de alguma forma, ou seja, ter a reserva de vagas para indígenas em todos os cursos?

Sim, esse é um processo de convencimento interno. Como eu lhe disse, a instituição é colegiada, então, os colegiados e seus convencimentos é que vão gerando decisões e é claro que essa formatura que fizemos agora sinaliza não só para o nosso curso de graduação, mas para os nossos programas de pós-graduação a necessidade de ampliarmos esse debate internamente e fazermos esse processo. Tem um efeito simbólico muito grande dentro da instituição.

Neste ano tivemos um bloqueio de R$ 15 milhões no orçamento da Ufam, num contingenciamento geral que afetou outras universidades e institutos federais. O senhor foi até Brasília junto de outros reitores para tentar reverter essa medida e conseguiu reduzir o bloqueio para R$ 7 milhões. Fora isso, o Ministério da Educação é um dos que mais perdeu orçamento nesse ano, ao lado da Saúde e Ciência & Tecnologia. Quão prejudicial é essa redução consecutiva para a instituição e qual o cenário previsto para 2023?

Temos feito todo um trabalho pelas pró-reitoria de Planejamento e Administração, e a Prefeitura do Campus, que executa obras, para que nós façamos um remanejamento orçamentário, uma revisão de contratos, sempre dialogando com todos os setores, e nós estamos atravessando esse momento. Pautados no diálogo com a comunidade e atores envolvidos. Fui até Brasília, estava dialogando para que buscássemos uma solução de forma que não tivesse nenhuma descontinuidade. Até que estamos agora a 15 dias para terminar o semestre e ele está sendo finalizado com esses ajustes que fizemos no nosso orçamento.

E a previsão para o ano que vem?

No próximo ano, o orçamento apresentado tem uma redução de 12%, em média. É claro que isso gera em nós uma preocupação muito grande, mas como o orçamento ainda será votado, iremos trabalhar para podermos buscar uma recomposição mesmo dentro dessa projeção. A Lei Orçamentária Anual é uma proposta, mas o relator do orçamento, eu sou presidente da Comissão de Orçamento da Andifes [Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior] então, já estive com o relator do orçamento 2023, que é o senador Marcelo Castro (MDB-PI). Conversamos e na época ele disse que o orçamento só seria tratado por ele ao término do processo eleitoral. Estamos aguardando para começar as tratativas. Falo também como presidente da Comissão de Orçamento da Andifes.

A portaria 555, publicada em 29 de julho pelo MEC, dá poderes aos reitores para demitir servidores em processos disciplinares, em instância única, sem possibilidade de recurso. Associações de docentes falam em ataque à ampla defesa e o medo de perseguições políticas. Como o senhor vê essa portaria? Há risco de algo assim?

Aqui na nossa instituição qualquer ato desta natureza é permeado pela ampla defesa, seja técnico-administrativo ou docente. Inclusive, todos os processos dessa natureza têm o parecer da Advocacia-Geral da União. E é peça obrigatória para qualquer decisão, seja minha enquanto reitor, ou de um colegiado em grau de recurso. Portanto, no nosso caso aqui, eu ainda não tenho nenhum caso concreto, mas da nossa parte nunca houve nenhum problema em relação a isso, porque seguimos estritamente o texto legal.

Perfil

Nome: Sylvio Mario Puga Ferreira
Idade: 51 anos
Estudos: Ciências Econômicas (Ufam)
Experiência:  Reitor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Professor Associado  do Departamento de Economia e Análise (DEA) da Faculdade de Estudos Sociais (FES).

Fonte: A Critica

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