Na linha de tantas outras carreiras, a tecnologia pode mandar desembarcar do mercado uma profissão tão tradicional quanto o próprio sistema de transporte coletivo de Porto Alegre: a de cobrador de ônibus. Um projeto de lei do Executivo e que aguarda votação na Câmara dos Vereadores prevê o fim da obrigatoriedade dos trocadores. A retirada seria gradativa, iniciando em alguns dias e horários e expandida conforme os atuais funcionários forem se aposentando ou sejam demitidos por justa causa. Ao final do processo, toda cobrança da passagem seria feita pelo motorista ou exclusivamente pelo cartão TRI.
Muitos dos atingidos já se preparam para engatar uma nova profissão caso o processo avance e sua tarefa seja extinta. A cobradora da linha Caldre Fião Andréia Sant´anna, 43 anos, admite que cedo ou tarde seu trabalho se tornará obsoleto. E teme que este prazo esteja correndo rapidamente.
– A mão-de-obra humana tem sido substituída pela tecnologia em muitas áreas. Nos ônibus de linha vai acabar acontecendo, ainda que os passageiros ainda dependam muito de nós para dar informações ou auxiliar no embarque e desembarque de cadeirantes, por exemplo – diz Andréia.
Diante de uma eventual mudança, ela já planeja o novo rumo profissional. Em 2018 iniciou um curso técnico em enfermagem, que deve concluir neste ano. Caso tenha de abandonar a catraca, espera estar preparada para se recolocar rapidamente _ afinal, tem uma filha de 16 anos para sustentar.
Mas nem todos têm a mesma pressa para colocar outra profissão no radar. Cobrador da Carrishá 11 anos, Gilmar Faustino, 39, reconhece a ameaça ao seu trabalho, mas ainda não iniciou a transição de carreira.
– Já pensei em fazer um curso de assistente administrativo para ter uma opção a mais, mas ainda não tirei o plano do papel. Também não adianta correr para se preparar para uma mudança que ainda nem é certo que aconteça – pondera.
Ceticismo na categoria
Desde os anos 90 os consórcios e empregados travam um embate em torno da necessidade ou não de cobradores. A demora em se avançar em uma mudança leva parte da categoria a duvidar que os ônibus passem a circular apenas com motorista. Entretanto, a expansão do uso do TRI e a concorrência dos aplicativos, que pressionam prefeitura e empresas a encontrarem formas de baixarem o preço da passagem, colocam a questão em ponto de urgência.
Conforme a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), o Projeto de Lei 015/17, que prevê a gradativa retirada dos cobradores, encontra-se atualmente em análise na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Vereadores. Se for aprovado neste ano, o impacto imediato na tarifa será de cinco centavos.
Esta discussão está longe de ser exclusividade de Porto Alegre. Conforme o Serviço Social do Transporte (SEST) e do Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT), pelo menos três grandes cidades brasileiras já eliminaram o posto _ Recife (PE), Belo Horizonte (MG) e Santos (SP). Uma pesquisa realizada em fevereiro pela Universidade de Brasília (UnB) colocou os cobradores como a terceira categoria com maior risco de ser extinta pela tecnologia _ logo atrás de Taquígrafo e Torrador de Café.
– O importante é que os profissionais estejam preparados caso haja esta mudança, inclusive estando capacitados para trabalharem como motoristas, que têm remuneração média 40% superior à dos cobradores _ afirma alerta a executiva nacional do Serviço Social do Transporte (SEST) e do Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT), Nicole Goulart.
Para preparar os cobradores para a mudança, as entidades lançaram um curso gratuito para capacitá-los a dirigirem ônibus. No Rio Grande do Sul, serão 700 vagas nas aulas que ocorrerão em sete municípios (veja o serviço abaixo).
Polêmica a bordo
A questão ainda suscita muita polêmica. O Sindicato dos Rodoviários de Porto Alegre (Stetpoa) avalia que o transporte público da Capital não está preparado para funcionar sem cobradores.
– Os ônibus circulam 90% do tempo por entre os carros, o motorista precisa do cobrador para ajudar a orientar e sinalizar. Além disso, é o cobrador quem ajuda a embarcar e desembarcar cadeirantes e deficientes visuais, em particular em paradas nas calçadas irregulares. Ou seja, o profissional faz bem mais do que cobrar passagem – argumenta Sandro Abbade, vice-presidente do Stetpoa.
O dirigente alerta que, caso a cobrança da passagem recaia sobre o motorista, causará congestionamentos no trânsito e atraso na tabela de horários. A Associação dos Transportadores de Passageiros de Porto Alegre (ATP) pensa diferente. A entidade alega que a medida traria impacto significativo na tarifa e que a modernização está tornando obsoleta a tarefa do cobrador, uma vez que hoje apenas 20% das passagens são pagas em dinheiro _ a maioria vem da bilhetagem eletrônica.
Em nota enviada à reportagem, A ATP afirma que a fiscalização do uso de isenções tem sido suprida pelo sistema de reconhecimento facial, já instalado em quase toda frota. “De qualquer forma, assim como prevê o projeto do Executivo, não teria como a função ser extinta de imediato. Trata-se de um processo gradual. Dentro desse processo haverá também um plano de transição e qualificação do profissional, que poderá migrar para outra atividade”, afirma a ATP.
Fonte: gauchazh